![]() "As companhias deviam socorrer o 'continente do Viamão', pois, diz o Vice-Rei em sua carta, 'estou persuadido que os Paulistas são os mais próprios homens que o Brasil tem para a vida militar'. " Por J. Wasth Rodrigues Deu-se, na Idade-Média, o nome de aventureiros a soldados voluntários, pagos ou não, que se agregavam às hostes, combatendo irregularmente e vivendo do saque. No século XIV, tornaram-se mercenários integrados às bandes, tropas compostas de vagabundos, salteadores e criminosos. Sua história é dramática pois esta gente indisciplinada e rixenta, que servia a quem melhor pegasse, foi uma das grandes preocupações dos chefes militares e dos monarcas, só melhorando no século XV, quando vieram a formar as Grandes Compagnies. O nome “Aventureiros” aparece em Portugal, já com sentido inteiramente diferente, com D. Sebastião, em 1578, na batalha de Alcacer — Quir. É, então, assim chamado um esquadrão formado de 1400 voluntários fidalgos. No Brasil, em tempos coloniais, a presença de “Aventureiros” é constatada várias vezes. Na expedição que partiu de Pernambuco em 1614 para a conquista do Maranhão, marcharam, além do corpo de infantaria, conforme relata Pereira da Costa, voluntários chamados Aventureiros “que, separadamente do mesmo corpo, teriam para comandá-los, quando fosse necessário, o cabo que se lhe nomeasse”. Os chamados Aventureiros da conquista eram companhias irregulares de índios e mestiços, criados para preceder na penetração do sertão às forças regulares, sendo geralmente destinadas a combater as investidas do silvícola. Foram extintas pela Provisão de 19 de dezembro de 1819. Companhias de Aventureiros Paulistas. A 1 de agosto de 1739, o governador D. Luís de Mascarenhas criou no território de Goiás — então pertencente a São Paulo — duas companhias de pedestres com designação de aventureiros que, pouco depois, foram reduzidas a uma. A partir da segunda metade do século XVIII, muitas companhias foram levantadas em São Paulo, como veremos, para acorrer às lutas no Sul ou guarnecer fronteiras. Uma companhia de “Aventureiros” foi organizada por Cristóvão Pereira de Abreu, criada por ordem de Gomes Freire de Andrade a 16 de janeiro de 1752, para integrar a expedição ao Rio Grande de São Pedro, por motivo da execução do tratado de Madrid. Gomes Freire partiu de São Paulo com duas companhias de Santos, ao todo 104 homens, e a Companhia de Aventureiros Paulistas que, com os Lagunenses, somaram 162 homens, sob o comando do capitão Mateus Camargo. Sob os feitos desta expedição, diz Rio Branco que os Aventureiros de São Paulo e Santa Catarina ajudaram a repelir o ataque dos guaranis, comandados por Sapé, ao forte do Rio Pardo, a 29 de abril de 1754. O forte, que estava sob o comando do coronel Tomás Luís Osório, tinha por guarnição, além dos Aventureiros, infantaria do Rio de Janeiro e Dragões do Rio Grande(2). Iniciada a luta no Sul contra os Castelhanos, motivada pelas hostilidades destes, chefiados por Vertiz y Salcedo, coordenou o Conde de Bobadela a 28 de março de 1762 ao Governador de Santos, Alexandre Luís de Souza Menezes, que subisse a S. Paulo e formasse um corpo de 200 homens. Informa Rio Branco que a 1 de janeiro de 1763, foi tomada a “trincheira espanhola do arrio de Santa Bárbara (Rio Grande do Sul) pelo Capitão Francisco Pinto Bandeira, à frente de 230 Dragões do Rio Grande e Aventureiros Paulistas. O principal herói do dia foi o Capitão Miguel Pedroso Leite, Comandante da infantaria de S. Paulo. A trincheira tinha 7 peças que foram transportadas para o forte do Rio Pardo e era defendida por 500 milicianos corrientinos e muitos índios, sob o comando do Tenente-Coronel Antonio Catanix”. Trata-se, provavelmente, de Aventureiros que ficaram no Sul, remanescentes da expedição de Gomes Freire, ou das companhias de infantaria de Santos, que marcharam para o Rio Grande em 1762. O Conde da Cunha, que substituiu Gomes Freire (conde de Bobadela) no governo do Brasil e no da capitania de S. Paulo em outubro de 1763, determinou ao governador de Santos, que fossem levantadas 4 companhias de Aventureiros, em todo o território paulista, com 60 homens cada uma, formando-se em Santos um núcleo de exército sob o comando do cel. Mexia Leite. As companhias deviam socorrer o “continente do Viamão”, pois, diz o Vice-Rei em sua carta, “estou persuadido que os Paulistas são os mais próprios homens que o Brasil tem para a vida militar”. E promete o pagamento do soldo “sem demora de dois meses pontualissimamente e ajuda de custas antes de saírem de suas casas”. O soldo oferecido foi de 4$800 por mês. Traiçoeiramente, D. Luís Antonio atraiu a tropa para São Bernardo e lá, compulsoriamente, escolheu os melhores homens, formando as 4 companhias que, sob o comando do Sargento-mor Teotônio José Juzarte, seguiram para Santos a 11 de Setembro de 1765 e lá ficaram de prontidão(3). Como sempre, o magnífico soldo e as vantagens prometidas aos aventureiros com tanto açodamento pelo Conde da Cunha foram esquecidos. Surge, neste momento a grave questão da situação destas companhias em face da organização do exército pois, criadas em emergências, não se enquadravam em nenhuma das três linhas existentes: tropa paga, auxiliares, ou ordenanças; daí a dificuldade para a legalização do soldo prometido, mandando embarcar as companhias para o Rio Grande, e aqueles que não o aceitassem ou não quisessem embarcar, que fossem castigados. De fato, embarcaram a 3 de janeiro de 1766 e chegaram à fronteira do Viamão a 14 de fevereiro do mesmo ano. A 21 de maio de 1767 foi feito um novo pedido, o de mais 90 aventureiros. Em carta de 14 de setembro do mesmo ano a D. Luís Antônio, pediu o Conde da Cunha que as 4 companhias se recolhessem aos seus quartéis pois chegara tropa de Lisboa com o general Bohm e o Engenheiro Brigadeiro Funck. Efetivamente, os Aventureiros voltaram do Sul em janeiro de 1768. Bohm era alemão e estivera em Portugal na comitiva do Conde de Lippe, em 1762, sendo um dos seus mais distintos oficiais. Em 1765, voltou a Portugal a pedido de Lippe, e, em 1767, veio para o Brasil, enviado pelo Marquês de Pombal, como tenente-general comandante em chefe de todas as tropas na campanha do Sul. Terminada esta com a vitória, voltou para o Rio em janeiro de 1779, sendo festivamente recebido. Devido a uma queda de cavalo, veio a falecer em junho do mesmo ano (Rio Branco diz a 22 de dezembro de 1783) sendo sepultado no Convento de Santo Antônio, pois se havia convertido ao catolicismo. Em 1772, três companhias de Aventureiros figuram na guarnição do forte ou presídio do Iguatemi. Este forte, situado à margem do rio Iguatemi, perto da foz do rio das Bogas, no Sul do Mato Grosso, foi fundado em 1765 pelo capitão João Martins de Barros, por ordem de D. Luís Antônio, para conter as incursões espanholas. Suas defesas, formadas de cinco baluartes e dois meios baluartes em terra batida e faxina, só terminaram em 1770, sendo armadas com 14 canhões. A guarnição foi composta de cinco companhias de Aventureiros Paulistas e uma de artilharia do Rio de Janeiro, num total de 300 homens. Sofreram estes soldados e a população civil, durante anos, toda a sorte de provações, misérias e doenças, com enorme perda de vidas. Em 1774, o forte foi atacado pelos Gauicurus. Em 1776, recebeu um reforço de 78 soldados do Regimento de Infantaria de S. Paulo, de Mexia Leite. Rendeu-se aos castelhanos comandados por D. Agostinho Penedo, em 27 de outubro de 1777, sendo arrasado. Destacam-se, na triste história deste forte, o sertanista Teotônio José Juzarte que comandou por algum tempo sua guarnição e deixou um Diário onde narra o que foi a vida na praça; o capitão João Martins de Barros e o vigário Antônio Ramos Louzada, que teve a desdita de assinar a capitulação — pois estava a praça sem comando — e por tal crime passou 19 anos encarcerado no Forte da Barra, em Santos. A 10 de agosto de 1774, promete D. Luís Antônio ao vice-rei a formação de mais uma companhia de aventureiros ou caçadores, precisando para isso de um oficial. Em 1775, são reorganizadas as tropas de S. Paulo a fim de seguirem para o Sul em vista de novas lutas, criando-se então a Legião de Voluntários Reais. Com isso, tendem a desaparecer os aventureiros; no entanto, em carta de 1777 promete Martim Lopes Lobo ao general Bohm a formação de uma companhia de aventureiros (de caçadores como então eram chamados) “de 100 homens fortes e resolutos que chamam caneludos”, projetando criar em seguida outra. Essa notícia enche de júbilo o general em chefe, que a 2 de junho do mesmo ano, não escondendo sua alegria ao governador, escreve sobre a notícia: “é a mais agradável que v. excia. me dá da formatura de uma companhia de aventureiros de cem homens, que eu receberei de braços abertos, e beijos às mãos de v. excia. pela mercê que nisto me faz particularmente”. Tal promessa não teve efeito em vista do armistício assinado. ~~~~ Excerto do livro "Tropas Paulistas de Outrora". São Paulo: Governo do Estado, 1978. Publicado no Facebook pela ótima página TRADIÇÃO PAULISTA ![]() TEXTO DE MONTEIRO LOBATO (famoso escritor, editor e separatista Paulista) “Após a vitória de São Paulo, na campanha ora empenhada, se faz mister que seus dirigentes não se deixem embalar pelas idéias sentimentais de brasilidade, irmandade e outras sonoridades. O Norte inteiro é nosso inimigo instintivo. O Rio Grande não é amigo. Minas cuida de si. O fato de sermos irmãos não implica amizade e apoio. Temos de nos guardar de todos esses irmãos. Se Abel houvesse pensado assim não teria caído vítima da queixada de burro com que o matou Caim. Consideremo-los como inimigos: se não o forem melhor; se inimigos se revelarem, estaremos preparados para a hipótese. A atitude única que o instinto de conservação impõe a São Paulo, depois da vitória, deverá expressar-se nesta fórmula: Hegemonia ou Separação. Ou São Paulo assume a hegemonia política, que lhe dá a hegemonia de fato que já conquistou pelo seu trabalho no campo econômico e cultural, ou separa-se. De modo nenhum poderá ficar na posição em que se achava em virtude da Constituição de 24 de fevereiro. Seria um suicídio. Para efetivar essa conquista não há negociar. Há impor com armas na mão. Medida de elementar evidência depois da vitória será, com absoluto desprezo de todas as leis federais relativas (leis feitas contra nós, na maioria) a transferência para São Paulo do melhor material bélico que esteja em depósito nos arsenais do Rio – aviões, artilharia, munição, etc. Em vez de nos armarmos para uma equiparação bélica com o inimigo é mais barato desarmarmos o inimigo e ficarmos com as suas armas. Desarmando-o desse modo, daremos, ao militarismo federal o primeiro golpe seguro. Ficará ele com os bufos, com a arrogância – e nós com a pólvora e a granada. O dilema é sério. Ou São Paulo desarma a União e arma-se a si próprio, de modo a dirigir doravante a política nacional a seu talento e em seu proveito, ou separa-se. Continuar como até aqui, a contribuir com setecentos mil contos por um ano para a manutenção do monstruoso parasitismo burocrático e militarístico do Rio de Janeiro – cuja função primordial é agredir e sabotar São Paulo – corresponde a suicídio por imbecilidade. Temos que pensar nisto muito a sério. A vitória paulista vai nos custar um sacrifício imenso. Guerra significa destruição intensa de riquezas. Nada mais caro que a guerra – e temo-la em casa. Essa vitória caríssima, porém, será miseravelmente sabotada e surrupiada pelos nossos amados irmãos em brasilidade, se no momento oportuno não soubermos agir com a mesma decisão com que estamos agindo agora. Temos que arrancar as armas federais (que o dinheiro paulista pagou) das munhecas dos nossos queridíssimos irmãos antes que eles as voltem contra nós ainda uma vez. Já três em sete anos – 1924, 1930, 1932. Positivamente é demais… O nosso sentimentalismo é uma forma de romantismo. Romantismo quer dizer criação dum mundo falso, fora de todas as realidades. De todo romantismo o homem acorda, um dia, ferido pelo pontapé da realidade. Ponhamos de lado o romantismo grotesco com que nos procuramos iludir, encaremos de frente a realidade real – como fazem os fortes. Saibamos, convençamo-nos de que Hobbes terá eternamente razão: o homem é o lobo do homem. Saibamos ainda que nunca, jamais, em tempo algum, o fato de ser irmão tirou ao lobo a sua ferocidade de lobo. Aceitemos Hobbes. Sejamos lobos contra lobos. Lobos gordos contra lobos famintos. Organizemos a nossa defesa. Tenhamos até a nossa futura Tcheca interna, nos moldes russos, se for preciso, para a destruição sistemática dos inimigos internos. Itararé está mostrando que quem o inimigo poupa nas mãos lhe morre. Convençamo-nos de que só há dois caminhos na vida: ser martelo ou bigorna, boi de corte ou tigre. Velha bigorna, velho boi de corte, velha vaca de leite que tem sido, transforme-se São Paulo em tigre. Faça-se todos dentes e garras afiadíssimas, antes que a linda idéia romântica da brasilidade o reduza a churrasco. E oponhamos aviação eficientíssima e metralhadoras das mais modernas às queixadas de burro com que Caim nos pode atacar.” *A íntegra da carta se encontra no livro “1932 – A guerra paulista”, de Hélio Silva, nas páginas 279 a 283.” ![]() “A Revolução figura não apenas como produto de interesses políticos das elites econômicas paulistas, mas também de um ideário identitário que encontrava importantes reflexos na intelectualidade e em suas corporações e instâncias de atuação” do livro 1932: Memória, Mito e Identidade. ———————————————– “Nesta guerra, entretanto, há uma página que é impossível se escrever. Nem o tempo, nem a inteligência humana, nem a história, com a pesquisa tantas vezes falha de seus autores, conseguirão interpretar a realidade da abnegação do povo paulista e o heroísmo de teus filhos” Manuel Osório, A Guerra de S. Paulo, 1933. ———————————————– “O Espetáculo de São Paulo em armas entusiasma mesmo os céticos. Há uma estranha beleza nesta metamorfose marcial. Um povo de trabalhadores despe a blusa e veste a farda. Tudo aqui deslumbra mesmo a agitação mais ardente”. João Neves da Fontoura – Rádio Record em 1932 ———————————————– “Contra a Constituição? Que vinham? Combater o comunismo ou o separatismo? Combater rebeldias ou estrangeiros? Não. Essa era verdadeira bacoria, errada, muito falsa. Vinham matar paulista, que era a frase muito comum dos prisioneiros gaúchos e de muitos pernambucanos, que ao menos tinham a verdade inaudita da sua vilania. E esses encarnavam o pensamento legítimo do Brasil que sabe ler”. Mário de Andrade ———————————————– “Incitei esta vibrante mocidade paulista a arriscar suas vidas, como eu poderia deixar de ir à frente? Eu não sou homem de retaguarda, que fica fazendo discursos nas arcadas da faculdade de direito e nas rádios, a proclamar-se ‘paulista de 400 anos’. O meu paulistanismo eu afirmo nas trincheiras de fuzil nas mãos”. Alfredo Ellis Jr ———————————————– “São Paulo, mesmo antes da descoberta do Brasil, já era uma nação amada e defendida por um povo bom, valente e generoso; já era uma nação definida geograficamente, não pelos tratados hipócritas das chancelarias, mas pelas flechas sibilantes dos arcos guaianás”. Plínio Ayrosa ———————————————– “Se um dia São Paulo se levantar em armas, contra o Brasil, não se veja nisso um ato de loucura. Uma falta de patriotismo!Não! Será porque o patriotismo paulista o exige! E o grito de POR SÃO PAULO LIVRE! arrancará uma nova nacionalidade aos braços da opressão”. José Fairbaks Belfort de Mattos, Fundamento Jurídico do Separatismo Paulista, 1933. ![]() Publicado no livro "Fundamentos do Separatismo", de João Nascimento Franco, Editora Pannartz. Quando a ideia separatista começou a ganhar impulso, algumas autoridades ensaiaram a repressão com base na Lei n° 7.170, de 1983, que tem por objetivo punir os crimes contra a segurança nacional, a unidade territorial e a ordem política e social. Durante o Estado Novo, foi editado o Decreto-lei n° 431, de 18.5.38, cujo art. 2°, item 3, cominava a pena de morte para quem tentasse "por meio de movimento armado o desmembramento do território nacional", desde que para reprimi-lo fosse necessário o uso de operações de guerra. Tratava-se, evidentemente, de texto "ad terrorem", porque nenhum movimento armado estava ameaçando a unidade territorial do Brasil. Leis dessa ordem são típicas dos regimes de força. Disfarçando seus verdadeiros objetivos, que é amordaçar a liberdade de opinião e de sua comunicação, o legislador editou a Lei n° 7.170, que, segundo prestigiosas opiniões, ficou revogada pelos incisos seguintes, do art. 5°, da Constituição de 1988: a) IV e IX, que asseguram a livre manifestação de pensamento; b) VIII, segundo o qual ninguém será privado de direitos por motivo de convicção política; c) XVI, XVII e XVIII, respectivamente destinados à tutela do direito de reunião e de associação para fins pacíficos. Referidos textos constitucionais são mandamentos que têm de ser respeitados e cumpridos. Contra eles é inoponível toda e qualquer disposição infra-constitucional, assim como atos em contrário de qualquer autoridade. Portanto, desde que se utilizem de meios pacíficos, todos os que vivem no território nacional têm direito de propagar suas idéias políticas, entre as quais a do separatismo, resultante da convicção política de que o país atingiu o ponto culminante do insucesso como unidade geográfica e administrativa. Mesmo entre os separatistas mais convictos esse desfecho histórico é constatado com pesar. Contudo, os povos têm direito de aspirar o melhor futuro e isso parece impossível através da unidade nacional de um país que tem, entre seus cento e quarenta milhões de habitantes, trinta e dois milhões de famintos; que apresenta analfabetismo ascendente, impressionante favelização urbana, confesso colapso da malha rodoviária, precaríssimo sistema ferroviário, elevado nível de insalubridade, de miséria, de criminalidade e, sobretudo, institucionalizada corrupção administrativa. E que nada faz com visão e objetividade para que esses fatos sejam superados. Diante desse quadro, irrompeu a proposta separatista pugnando pelo fracionamento do país em cinco ou seis blocos, a fim de que cada qual possa gerenciar o produto de seu trabalho e cuidar de seu próprio destino. Talvez, segundo alguns, por via de uma confederação real, descompromissada com o passado e com o tal "jeitinho" que costuma ser utilizado como habilidade, mas que não passa de maquinação através da qual "plus ça change plus ça c'est la même chose"... Pensar e agir pacificamente nesse sentido é direito inderrogável pela malsinada lei federal n° 7.170, de 1983, com a qual o autoritarismo militar pretendeu algemar idéias e nulificar a liberdade individual. Essa conclusão deflui de sentença proferida, em 31.8.93, pelo juiz José Almada de Souza, da 8ª Vara da Justiça Federal de Curitiba (inquérito foi mandado à Justiça Federal a pedido do procurador da Justiça Militar, por ele considerado incompetente, uma vez que cogitava de fato que, se criminoso, teria natureza política) na qual o ilustre magistrado determinou o arquivamento de inquérito instaurado pela Policia Federal do Paraná, mediante provocação do Ministério da Justiça. E é importante salientar que referida decisão atendeu a requerimento do próprio Ministério Público, representado pelo Procurador da Justiça, Dr. Jair Bolzani, que se tomou, pela sensatez e serenidade de sua manifestação, credor das homenagens dos homens livres. Em seu pronunciamento, o douto Procurador ponderou: "Primeiramente, há que se ter em conta que a configuração do crime previsto no artigo 11 da Lei n° 7.170/83 depende da ocorrência de um dano efetivo à integridade territorial nacional ou de um dano potencial, isto é, aquele que pode resultar do comportamento do sujeito, conforme prevê o artigo 1° da referida lei. Portanto, não se pode admitir, sob pena de má aplicação de tal lei, que a apreensão de bonés, chaveiros, camisetas, cartazes, adesivos e panfletos com os dizeres 'O Sul é o meu País' e 'Sociedade amigos do Paraná' seja suficiente para perfazer o tipo penal em exame". Em suma, segundo o ilustre membro do Ministério Público, a utilização de meios pacíficos de difusão do tema separatista não compromete a ordem pública, porque se insere na liberdade de opinião e de sua manifestação, assegurada pela Lei Maior. Igual entendimento já havia sido sustentado pelo ilustre criminalista Damásio E. de Jesus, ao escrever que os delitos capitulados na Lei n° 7.170 só se tipificam com um concreto "ato executório de tentativa de divisão do país, mediante violência física, grave ameaça, atos de terrorismo, estrutura paramilitar, etc.". Numa síntese, o consagrado criminalista preleciona que "o crime consiste em tentar dividir o país à força" (O Estado de S. Paulo, 18/5/1993, pág. 3). Também o ilustre advogado e jornalista Luiz Francisco Carvalho Filho lamentou que o Presidente da República e seu Ministro da Justiça partissem para a intimidação brandindo a famigerada Lei de Segurança Nacional que, sobre ter sido revogada pela Constituição Federal, evoca a fase mais toma da ditadura militar: "Ao reprimir os separatistas do Sul do país, tentando enquadrá-los na Lei de Segurança Nacional", disse o ilustre advogado, o governo "revela desvio autoritário, desconhecimento da lei e falta de inteligência política". E prossegue, depois de afirmar que se os separatistas haviam ofendido a Constituição, o governo também a tinha violado: "Em primeiro lugar, porque o dispositivo que pune a tentativa de desmembramento do território não é para quem manifesta a idéia, mas para quem tenta dividir o país à força. Os separatistas têm direito de se associar, de defender a convocação de um plebiscito para decidir o desmembramento e difundir o projeto". Antecipando-se às decisões judiciais que viriam trancar os inquéritos contra os separatistas, conclui o jurista: "O que se deve proibir é o ato de violência, é a organização paramilitar. Ao contrário do que pensa o ministro da Justiça, a Constituição assegura a plenitude da liberdade de manifestação do pensamento. E, com efeito, o país tem muitos problemas reais" (Folha de São Paulo, 9/5/1993, págs. 1-12). No mesmo sentido disserta Sérgio Alves de Oliveira, em obra sobre o propósito separatista sulino, depois de ponderar que o Estado é um meio e não um fim: "Se o Estado não consegue atender a contento as necessidades e desejos humanos, nos parece que o próprio direito natural coloca nas mãos do homem a faculdade de refazer o Estado dentro desse objetivo". E continua: "Portanto, nenhum crime existe em buscar o bem-estar do povo de uma determinada região mediante o processo separatista, o que é uma das formas admitidas em doutrina para refazer o Estado. E tanto isso é um direito que a própria história registra inúmeras mutações havidas ao longo do tempo em outras nações. Se é tida como válida a emancipação de municípios e de Estados-membros, qual o motivo de não se entender esse mesmo direito a regiões que desejam formar um novo Estado soberano? Se é possível ao indivíduo, a qualquer momento, desligar-se das sociedades humanas, o que é consagrado inclusive na constituição, como deixar de reconhecer o direito de secessão?" (Independência do Sul, pág. 61). Nos comentários às constituições e cartas constitucionais brasileiras, desde a de 1891 até a outorgada pela ditadura militar em 1964, Pontes de Miranda reprisou sempre que se integram, uma como conseqüência da outra, a liberdade de pensamento e a liberdade de expressá-lo. Segundo o constitucionalista, o aniquilamento de uma importa na inutilidade da outra: "Se o poder público se esforça, se afana, por saber o que no íntimo se pensa, o que se diz, não há liberdade de pensar. Tal esmiuçar de palavras, de gestos, para se descobrir o que o indivíduo pensa, marca um período de estagnação ou de decadência dos povos. A diferença entre liberdade de pensamento e liberdade de emissão do pensamento está como se quer. Nessa, além de tal direito, o de se emitir de público o pensamento. Mas que vale aquela sem essa? Vale o sofrimento de Copérnico esperando a morte, ou o acaso, para publicar a sua descoberta. Vale o sofrimento de todos os perseguidos, em todos os tempos, por trazerem verdades que não servem às minorias dominantes, essas minorias que precisam considerar coisa, 'ontos', as abstrações, para que a maioria não lhes veja falsidade" (Comentários à Constituição de 1967, tomo V, págs. 149 in fine e 150). Fiéis a esses princípios, os juristas se manifestaram contra a repressão aos separatistas e esclareceram que a sustentação da idéia secessionista respalda-se no princípio constitucional da liberdade de opinião, donde resulta que nenhum crime eles praticam quando as divulgam. Crime é, como se verificou, a utilização de meios violentos e de organização paramilitar. Nenhum ato desse tipo foi até hoje praticado, nem está na intenção dos que, convencidos da inoperância da união política e territorial brasileira, pregam por meios pacíficos a separação, que pode ser alcançada sem recurso à violência, pelo simples debate das idéias. Porque, já dizia Voltaire, quando um povo começa a pensar ninguém consegue detê-lo. O direito de secessão se concretizará se e quando o momento histórico chegar, tal como aconteceu com o Brasil em relação a Portugal, ou com os Estados Unidos em relação à Inglaterra. Tudo permite admitir que o desate poderá ser feito através de simples reforma constitucional que dará espaço a um plebiscito arejado, amplo e livre. Até lá os separatistas suportarão a pecha de impatriotas. Mas resistirão, lembrando-se de que também De Gaulle e Jean Moulin foram tachados de inimigos da pátria e de subversivos pelo regime de Vichy, quando sozinhos começaram a lutar pela libertação da França; de que Tiradentes foi igualmente apodado de louco e de lesa-pátria pelas autoridades fiéis à Coroa portuguesa, de que os revolucionários de 1932, que o governo federal de então denunciou ao país como inimigos, hoje são reverenciados até pelo Exército, nas comemorações realizadas em cada 9 de Julho... Compreende-se, portanto, a serenidade e o senso de justiça com que agiram o Ministério Público e o referido Juiz Federal do Paraná, não vislumbrando nenhum matiz delituoso nos atos meramente políticos praticados pelos líderes paranaenses do Movimento "O Sul é o meu País". E note-se que ao parecer acolhido pela mencionada sentença, soma-se outra manifestação do Ministério Público Federal reconhecendo o direito à divulgação do ideal separatista e tutelando-o contra ato do chefe da agência da Empresa Brasileira de Correios, na cidade de Laguna, que resolveu interditar a expedição e o recebimento de correspondência pelo Movimento "O Sul é o meu País" (O Estatuto do Movimento O Sul é o meu País tem existência legal, pois foi registrado sob n° 363, fls. nº 86, livro A.3, do Registro Especial de Laguna, e está inscrito no CGC-MF nº 80.961 337/0001-02). Em face desse ato, o presidente do Movimento, Dr. Adílcio Cadorin, reclamou perante o Ministério da Justiça, que encaminhou o caso ao Ministério Público Federal, em Florianópolis. Tão logo recebeu o expediente ministerial, o Ministério Público Federal, por seu agente de Florianópolis, impetrou mandado de segurança contra o ato da autoridade coatora. Na sustentação do "writ" impetrado, o Procurador da República, Dr. Marco Aurélio Dutra Aydos, escreveu: "Tratando-se de direito concernente a liberdades públicas, desde logo que se estabeleça um princípio interpretativo: só pode ser ele limitado por lei que defina, precisamente e em toda a sua extensão, o objeto de restrição. A enumeração legal deve ser entendida como de numerus clausus, não podendo ser ampliada por analogia. É princípio de direito penal que a lei incriminadora tenha de ser certa, lex certa como ensina FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO: 'A exigência de lei certa diz com a clareza dos tipos, que não devem deixar margens a dúvidas nem abusar do emprego de normas muito gerais ou tipos incriminadores genéricos, vazios.' (Princípios Básicos de Direito Penal, SP, Saraiva, 1991, pág. 29)". O princípio da lex certa é de todo aplicável ao caso em exame, que trata de restrição legal a direito constitucionalmente assegurado. Se a lei restritiva é aberta, vazia, pode o administrador jogar com os seus conceitos para conceder ou negar o direito a seu falante. Expressões com "dizeres injuriosos, ameaçadores, ofensivos à moral, contrários à ordem pública ou aos interesse do país, não são aptas a conferir certeza à norma restritiva de direito. Ao fazer juízo de inconveniência aos interesses do país e à ordem pública, fundado no art. 13, IV da Lei 6.538/78, a autoridade impetrada não apenas restringiu o direito à correspondência em casos que ela mesma considera 'muito complexa', mas antecipou-se à investigação policial e à opinião delicti. O administrador foi polícia, acusador e juiz. No caso concreto, a investigação policial iniciou-se com pedido de busca e apreensão formulado perante o Juízo Federal da Segunda Vara (Processo n° 93.0003779-0). Pode se cogitar da hipótese de o Ministério Público e o Judiciário considerarem a conduta, do ponto de vista da Lei de Segurança Nacional em vigor, lícita. Não se pode admitir que a Administração emita tais juízos, restringindo direitos. Sendo penalmente lícita ou irrelevante a conduta, não pode o administrador fazer dela juízo de oportunidade e conveniência, a teor do art. 13, IV da Lei 6.538/78, a qual, nessa parte, por criar tipo um vago e incerto para restrição de direito constitucional, afronta a Lei Maior". Estas considerações e tão lúcidas manifestações do Ministério Público, do Poder Judiciário e dos juristas, deixam claro que qualquer pessoa pode aspirar e pregar a separação de seu Estado, quando convicta de que ele está suficientemente preparado para gerir seus próprios negócios, ou por entender que seus interesses atingiram um ponto de clivagem com os interesses de outras regiões. Conseqüentemente, nada justifica restrição ou punição dos que sustentam o ideal separatista pelos meios de comunicação, desde o rádio até o livro. É claro que, em respeito à Constituição, não deve ser adotado nem insinuado nenhum meio violento. Melhor dizendo, ou sendo mais claramente, ser separatista e debater o separatismo é direito que nenhuma norma legal pode impedir sem desrespeito à Constituição. Trata-se da liberdade de opinião, assegurada pela Declaração Universal dos Direitos do Homem. Em vez de coagir, cabe às autoridades, em respeito ao princípio de autodeterminação dos povos e à liberdade de opinião, testar a consistência ou a inconsistência da idéia através de um plebiscito cujo resultado deverá ser civilizadamente aceito tanto pelos separatistas quanto pelos adeptos da união. Dir-se-á que a Constituição considera a unidade nacional como "cláusula pétrea" e que, por isso, o plebiscito seja inconstitucional. Ocorre que as "cláusulas pétreas" constituem uma heresia sempre suplantada pela força incoercível da História. Quando o relógio da História bater a hora da separação nenhum dispositivo legal, pétreo ou não, poderá adiá-la. |