![]() João ALBERTO SALES "Suponhamos agora, depois que já conhecemos a teoria, que o separatismo é aplicado à nossa província e que ele passa, de um momento para outro, de simples feitoria imperial a constituir um estado independente. completamente separado do resto da comunhão brasileira, com sua vida governamental à parte, sua administração particular e na plena posse de si mesma, quer em relação à gerência de seus negócios internos, quer no tocante às suas relações exteriores. Quais seriam nessas condições, as consequências que daí poderiam resultar para São Paulo? É evidente que a primeira consequência seria a autonomia política da província. Uma vez desligada do império, isolada ou não, é fora de dúvida que a sua organização governamental seria inteiramente independente. Seria um novo organismo político que surgiria, um estado perfeitamente constituído, com suas instituições particulares, adaptadas às suas condições de vida especiais e, conseguintemente, mais uma individualidade nacional, que afirmaria a sua existência e que traria claramente traçada a sua rota, nos futuros combates pela vida. Sendo assim, é fora de dúvida que o novo meio em que começaria a mover-se a província só poderia ser-lhe favorável, quer no ponto de vista do seu progresso material, quer em relação aos melhoramentos de suas condições morais de existência, pelas benéficas e salutares reações que necessariamente haveriam de se estabelecer, de um lado no seio mesmo de sua população, de outro entre o novo estado sul-americano e as demais potências políticas. No interior, em vista mesmo das profundas transformações porque teriam impreterivelmente de passar as suas instituições, era natural que surgisse da parte dos cidadãos da recente nacionalidade um estímulo novo e mais poderoso para as funções políticas e sociais, ao lado de um aproveitamento mais equitativo, mais racional e mais completo das atividades individuais e isoladas. Em vez do regime do privilégio e do monopólio, que atualmente caracteriza a nossa vida política, ao ponto de serem as funções governamentais exercidas pelos menos competentes e não pelos mais aptos, como aliás o deveria ser em uma boa organização social, a massa inteira dos cidadãos veria a sua atividade cuidadosamente aproveitada e a intervenção de cada um, na direção dos negócios comuns, em vez de ser uma pura ficção, como presentemente acontece, seria uma realidade viva e palpitante . Ao contrário dessa organização imperfeita e completamente manca, que hoje possuímos, a constituição governamental do novo estado havia necessariamente de ser um todo perfeitamente homogêneo, com seu departamento executivo , seu departamento legislativo e seu departamento judiciário, claramente discriminados uns dos outros, exercidos por órgãos independentes, e solidariamente responsáveis pela promoção do progresso e do bem-estar geral da nova comunidade, Outras avenidas, largas e espaçosas, seriam francamente abertas à atividade política dos cidadãos e a lei fatal da concorrência, que só faz com que triunfem os mais fortes e os mais competentes, seria o único critério que decidiria em última instância da sorte dos pretendentes, na luta travada por todos pela posse das funções públicas; de sorte que o resultado desse esforço geral não poderia ser outro senão fazer brotar no espírito público, cheia de energia e de vigor, a plena consciência de nossa autonomia política. O título de cidadão, aliás tão significativo, mas que hoje soa apenas como um eco amortecido aos ouvidos dos paulistas ou como uma simples legenda descorada e corrompida pelo tempo, surgiria como uma poderosa síntese política, alimentada pelo sentimento coletivo da nova nacionalidade e se tornaria por si um dos mais enérgicos estímulos para o levantamento moral e material da nova pátria. Por outro lado, as relações exteriores com as potências estrangeiras, estabelecendo uma nova corrente política entre o estado nascente e os outros povos autônomos, havia forçosamente de chamá-lo à comparticipação da vida internacional e, conseguintemente, a tomar parte direta nos grandes banquetes da civilização moderna. Seria uma dilatação incessante da nossa vida social e, portanto, mais uma fonte de melhoramentos e de progresso para a nossa população. Em troca dessa vida inglória e completamente anônima que leva a província no seio da atual organização monárquica, esterilizando-se de dia em dia nas lutas improfícuas que sustenta contra i terrível Minotauro do governo central, receberia ela pelo separatismo a sagração solene de sua autonomia e, conseguintemente, a suprema garantia de seus direitos e da direção livre e independente de seus destinos. Não há dúvida, portanto, que por este lado incalculáveis seriam as vantagens que para nós poderiam advir do separatismo. Abrangendo uma extensão territorial superior à de muitos países do continente europeu e podendo comportar perfeitamente em seu seio uma população de mais de quarenta milhões de habitantes, ninguém poderá dizer que São Paulo não possui os elementos necessários para tornar efetiva a sua autonomia política. Como estado independente, ou seja isolado, ou seja federado a outros também independentes, o seu território é mais do que suficiente para o desenvolvimento e uma grande população, de uma poderosa indústria, de um comércio ativíssimo e de uma civilização progressiva, libérrima e cheia de vida. Foi deputado federal no século XIX e ideólogo republicano separatista. Seu livro A Pátria Paulista, é um clássico de nosso separatismo e foi editado em 1887. Era irmão do presidente Campos Sales.
0 Comentários
![]() RAUAN LUIZ Compreender uma nação é, em princípio, compreender as incitações, obstáculos e concessões fornecidas por sua região. O cenário encontrado no planalto vicentino parecia ser totalmente adverso a qualquer tipo de colonização e penetração pelo seu interior. O primeiro obstáculo a ser vencido era a Serra do Mar, uma muralha natural de quase mil metros de altura coberta por densas florestas. Contudo, desbravar a Serra do Mar era um convite ao descobrimento de todo o interior da América do Sul, quem fez esse convite foi, é claro, o Tietê. Uma série de adversidades como, por exemplo, o isolamento e a pobreza, incutiram nos paulistas o espírito desbravador, esse mesmo espirito parecia estar presente também no nobre anfitrião dos sertanistas, o Tietê que audaciosamente recusa o mar e vai banhar o Oeste. Aquela velha muralha que parecia fazer do seu interior uma fortaleza isolada do resto do Universo contribuiu mais tarde para que os recém rechegados paulistas se tornassem a face desse isolamento. Integraram-se aos nativos, criaram um idioma, um folclore, uma constituição não escrita, enfim, toda uma cultura e identidade. Esse é um dos aspectos mais interessantes da história de São Paulo. A geografia da região e as adversidades confluíram para forjar uma nação que construiu o Centro-Sul do Brasil. Sérgio Buarque de Holanda já assinalava que a aversão ao sedentarismo e aos latifúndios foram elementos importantes para a constituição do caráter dos locais, e além disso, fizeram do Tietê uma espécie de presente ao espirito paulista da época. Os diários, relatos e registros que temos dessa época são belíssimos, Afonso de E. Taunay publicou uma coleção deles no seu livro “Relatos Monçoeiros”, transcrevo um trecho da introdução, um convite irrecusável à leitura: II PAPEL CAPITAL DO TIETÊ NOS FASTOS DA CONQUISTA OCIDENTAL. — O EPISÓDIO DAS MONÇÕES CUIABANAS ÍMPAR NOS ANAIS DA HISTÓRIA UNIVERSAL. O TIETÊ E O SÃO FRANCISCO. AS PRIMEIRAS NAVEGAÇÕES PARA OESTE. ANHEMBY E TIETÊ. Criara-se o episódio das monções, incerto com o maior relevo nos anais do bandeirantismo de São Paulo, assumido ímpar originalidade não só em nossos fastos nacionais como nos do Universo. E, com efeito: em parte alguma do globo as condições geográficas, demográficas, comerciais, coexistiram e associaram-se tão típicas, tão originais, quando as que caracterizaram esta via anfíbia de milhares de quilômetros de imensos percursos fluviais e pequenas jornadas terrestres: a estrada das monções entre os pontos terminais de Araraitaguaba e Cuiabá. Separados por três mil e quinhentos quilômetros da mais áspera navegação com a mínima solução de continuidade constituída por alguns quilômetros do varadouro Camapuan. Foi esta via dolorosa o recuador, por excelência, das lindes luso-espanholas para o âmago da América do Sul. E em desrespeito ao ajuste inter-ibérico de 1494 definitivamente perempto em 1750 graças ao influxo das bandeiras sobre a resistência e a inércia castelhanas, pequena ao Sul e no Centro do Brasil atual, quase nula e, por assim dizer, inexistente na Amazônia. Na perseguição do meridiano de Tordesilhas forçada a um deslocamento de vinte graus do litoral paulista às margens do Guaporé o percurso das monções se nos afigura como se enristada lança fora, de irresistível empuxo contra a linha interpolar diplomática estatuída pelo Príncipe Perfeito e os Reis Católicos. De coto lhe serviu o Caminho do Mar; de haste o álveo do Tietê. No século XVII nunca ensarilhada esteve tal arma. Enristou-se esporadicamente e seus pontaços penetrando fundamente no domínio castelhano asseguraram a Portugal a posse das terras de além Paraná, o que permitiria a Alexandre de Gusmão invocar o mais prestigioso uti possidetis consagrado nas decisões do Tratado de Madri. Como com tanta exação escreveu Pedro Taques, com o prodigioso faro de mateiros: “apesar da falta da geografia, cuja ciência totalmente ignoravam” sabiam os antigos paulistas escolher as melhores vias de penetração “na maior parte dos incultos sertões da América conquistando nações bárbaras”. O grande tronco das expedições além Paraná foi o Tietê. As referências ao Paranapanema não passam de acidentais, sendo até quase inexistentes. Dos três grandes eldorados brasileiros um apenas decorreu da navegação fluvial: o do Cuiabá com a sua cabeça de escala de Araraitaguaba. Ninguém ignora que os das Minais Gerais e Goiás procedem de estradas terrestres. E entretanto poderia o primeiro ter sido revelado pela facílima navegação do S. Francisco e do Rio das Velhas e a contra-corrente em águas plácidas e perfeitamente conhecidas, desde antes da primeira metade do século XVIII. Os jazigos sabarenses estavam, por assim dizer, à mão tente dos povoadores do Norte. Remontando águas plácidas viriam ter à confluência do Sabará e do Guaicui. Ficaram os criadores com as suas manadas francisquenses a centenas de quilômetros dos jazigos auríferos separados pelo sertão bruto mau grado a fantasiosa afirmativa dos que pretendem haverem os descobridores da região aurífera, havê-los encontrado às ribeiras do Guaicui e do Paraopeba. Diversos são os autores a quem ocorreu idêntica similitude de idéias sobre a predestinação no papel de São Paulo, dada a sua situação geográfica no planalto, colocado como plataforma de torre dominadora de abruta muralha, quase vertical, de quase um milheiro de metros de desnível sobre o Oceano. E com a particularidade de que o vencimento desta escarpa era dos mais penosos para os recursos do tempo. Daí as objurgatórias expressas pelos velhos cronistas e sintetizadas na frase de Frei Gaspar da Madre de Deus quando chamou o Caminho do Mar o “pior caminho que tinha o Mundo”. Recorda Melo Nobrega em seu belo estudo “História de um rio” várias destas opiniões. Assim enuncia Teodoro Sampaio que o Tietê, “estrada natural ligada ao amplíssimo sistema fluvial permitia atingir o íntimo do Continente”. O ilhamento dos primeiros povoadores do planalto piratiningano, isolado do Universo pela enorme muralha de Paranapiacaba, quando para Oeste e derrama das terras e o curso dos rios lhes apontava terras infindáveis e acessíveis levou-os à vida aventurosa dos bosques que para eles tinham todos os perigos e o fascínio do incógnito, expende Joaquim da Silveira Santos. A vocação destes pioneiros, segundo a feliz observação de Sérgio Buarque de Holanda, estaria no caminho que convidava ao movimento e não na sedentarização da grande propriedade rural. E observa Nelson Wernack Sodré que a geografia local de Piratininga era tácito convite: “O Tietê corria para os sertões”. Secunda-o Cassiano Ricardo em exata e sintética fórmula: “o planalto empurrou o paulista para o interior”. Foi o seu rio o Tietê, “que o fez sertanista e bandeirante”. Não há dúvida que o apossamento do Guairá, de capital importância no conjunto da expansão bandeirante se fez sem o intermédio do Tietê. Mas serviu ele de esteira à conquista do Mato Grosso, a dos Itatins, consolidada por Francisco Pedroso Xavier no último quartel seiscentista. Às suas maretas entregaram-se, mais que provavelmente os grandes expedicionários de além Paraná. Poder-se-á objetar que não é possível afirmar se houveram todas essas bandeiras utilizado o Tietê. Mas tudo faz crer que sim, por diversos motivos. O Paranapanema correndo bastante mais ao sul é tão áspero de vencimento quanto o seu grande paralelo setentrional. De São Paulo à barranca longínqua existia até meados do século XVII o deserto. O Tietê já desde 1580 tinha, e a 36 quilômetros de São Paulo, o núcleo de Parnaíba que chegou a tão considerável importância. O de Itu já desde 1609 existia, em terras lavradias. Sorocaba, por volta de 1650 surgia sobre um grande tributário do Anhembí. Eram três verdadeiros viveiros de sertanistas estes três núcleos satélites de São Paulo. Todos no vale do Tietê. Na demonstração dos diversos caminhos de que os moradores de São Paulo se servem para os rios Cuiabá e Província de Cochiponé, se demonstra quanto o Tietê era a via preferencial, por excelência, para a penetração no recesso das terras centrais. TAUNAY, E. A. Relatos Monçoeiros. São Paulo: Martins Editora, 1976, p. 13-15. Rauan Luiz administra a ótima página Tradição Paulista, no Facebook. ![]() ERNANI DA SILVA BRUNO Ainda um fator de caracterização de São Paulo em face de outras cidades grandes brasileiras - do ponto de vista da composição racial e de traços de cultura - foi a contribuição de espanhóis a formação da população do planalto. Isso desde os primeiros tempos e acentuadamente a partir de 1580, quando Portugal passou ao domínio da Espanha, falando-se então em São Paulo, ao lado da "língua geral", coisa, no carácter e nos costumes dos Paulistas - observou o viajante Rugendas - pode ser explicada pela contribuição do sangue espanhol. Referia-se o desenhista alemão à simplicidade dos costumes Paulistas e à ausência de luxo, mesmo entre as suas classes elevadas. E ainda ao fato de que entre os Paulistas a música, a dança e a conversação substituíam o jogo, que era um dos divertimentos principais em outros núcleos urbanos brasileiros, onde seguiam, nesse ponto, "os hábitos portugueses e ingleses, ao passo que os Paulistas conservaram as tertúlias da Espanha". Por outro lado, Ferdinand Denis, referindo-se a província de São Paulo em torno de 1837 observou a semelhança de sua capital com certas cidades da Andaluzia. Em parte, talvez, impressionado com os trajes das mulheres das classes mais abastadas, que usavam na época vestidos de sarja de Málaga e mantilhas de pano fino com largas rendas de retrós. Traje pitoresco ainda em meados do século por algumas Paulistas de distinção, no dizer de Bernardo de Guimarães, "enquanto que as escravas e as mulheres de baixa classe" usavam embrulhar os ombros e a cabeça em dois côvados de pano ou baeta. Do primeiro volume do livro "História e Tradições da Cidade de São Paulo". ![]() ALLYRIO MEIRA WANDERLEY Quando uma nação nasce, começa a morrer. Dá-se com ella o que se dá com todo organismo: o nascimemnto é o primeiro passo para a morte. Traz em si, occulto mas activo, o germen da desaggregação. E' o principio do fim. Sujeita-a, destarte, uma regra inflexivel. Poder-se-ia mesmo estudar a biologia das nações, mediante um paradigma cellular. Com effeito, as nações como as cellulas, se multiplicam por seccessão. A scissiparidade nacional é, em sociologia, o que é, em biologia, a scissiparidade cellular. Tem a constancia caracteristica das leis naturaes. Esse simile biologico vae ás ultimas consequencias e minucias; ajuda-se ao phenomeno sociologico da multiplicação das nações, como um corpo á própria imagem. E não se limita a reproducção: attinge a conjugação, attinge até a immortalização experimental dos unicellulares. Se, pois, uma nação é um organismo adstricto a nascimento, crescimento e multiplicação, graças a uma lei que rege a sua evolução essa lei é que determinará, mais cedo o mais tarde, no exercicio da sua soberania, o desmembramento do Brasil.... Objectar-se-á, talvez, que certos organismos vivem em colônias e que a divisão individual não implica em separação, ao passo que outros, multicellulares, devem a existencia á propria aggregação das partes. De facto. Mas, o fim de todo sêr é viver. E o que conduz a cellula á scisão é ainda essa vontade universal de viver; quando se sente envelhecer e, portanto, approximar-se da morte, busca o rejuvenecimento na seccessão e, com isso, a perpetuação nos pedaços em que se reparte e que renovarão o mesmo cyclo vital, seguido da mesma multiplicação, indefinidamente. Por outro lado, a condição essencial á existencia de qualquer sêr, como especie é a sua adaptação ao meio e a correlação das especies ahi em acção. Donde, a constante procura de um equilibrio e as varias modalidades de associação, que oscillam do commensalismo e da symbiose até o parasitismo, com vantagem para um dos componentes. Nas nações, formadas de partes distintas, a seccessão sobrevem ao rompimento do equilibrio entre ellas e o ambiente, tal qual no unicellular, impossibilitado de sobreviver, sem alguma mutação superveniente, em harmonia com seu meio. Uma se torna nociva ás outras, e exhaure-as ou intoxica-as incapacitando-as para a adaptação, isto é para a lucta contra o universo que nos aggregados humanos, se reduz á manutenção de dadas funcções e organizações: costumes e instituições; então, essas outras reagem, para escapar ao extermínio. Se a cellula não se scinde, entra na decrepitude e morre; se a nação não se desmembra, ganha-a sorte egual. Ora, a biologia e a historia mostram que ambas preferem á anniquilação a sobrevivencia e, assim, sabe-se qual o caminho que seguem nessa aspera bifurcação de destinos. Veja-se, então, de mais perto isso tudo. E nada melhor que um exemplo, arrancado ao passado, para mostrar na sua nudez o futuro. Um e outro são o fio de um mesmo carretel, que se desenrola com a passiva Constancia da eternidade. Era uma vez uma nação chamada Roma. Nascera, fosse lá como fosse, crescera e, finalmente, amadurara. Cellula poderosa, palpitando no meio onde brotara, começou a absorver tudo quanto a rodeava. Absorvia e assimilava. Aquilo em que roçava transformava-se como que por magia; sua vitalidade parecia illimitada e, dahi, a intensidade do seu matabolismo. Ficou, como cellula, enorme. Mas, chegava o momento em que a cellula, maior, principia a criar a cinta, que depois é vinco e que, afinal, se torna corte, separando-a em bocados. E um pedaço da cellula Roma, differenciando-se cada vez mais, apartando-se cada vez mais, certo dia, com um pouco do seu nucleo e do seu protoplasma - vestigios de idioma e de religião, de jurisprudencia e de costumes - desprendeu-se: foi uma nação nova, que teve o nome de Hespanha. Roma quedou para o seu lado, sujeita a novas secessões; Hespanha, então, iniciou o seu proprio destino de cellula independente. Por sua vez, cresceu; devorou; estendeu-se na medida do possível. E assimilava quanto lhe era permitido. Amadureceu também; e, pouco a pouco, parte do seu organismo pôs-se a divergir, pôs-se a afasta-se. Surgiu, no corpo vivo da cellula, a cinta typica, que após se fez vinco e, por fim, se fez talho. Em summa, a cellula scindiu-se; e appareceu, ahi, Portugal. Hespanha ao cabo, seguiu o seu caminho, exposta a novas divisões emquanto Portugal, por seu turno, cuidava de cumprir, bem ou mal, o fato de cellula livre. Não podendo crescer para o oriente, onde permanecia, inexpugnavel, a cellula madre, voltou-se para o oeste e achou o mar. O mar, porém, nada lhe dava. Atirou-se contra elle, passou sobre elle e veio, cá na America, procurar aquillo que necessitava: alimento. Encontrou-o. Tomou-o a seu talante. Incorporou-o a si, como é costume das cellulas, absorvendo-o e assimilando-o . Subiu a um alto grau de desenvolvimento. Todavia, ergueu-se aquella fatalidade biologica, que não permitte estacionamento nem eternizações a nação nenhuma. Esta parte da cellula, então, expontanea e inesperadamente, deu para colori-se, para individualizar-se. Debalde pretenderam retel-a na senda da differenciação: proseguiu com vegetativa regularidade. Aggravou-se, com o tempo, o phenomeno. E, contra tudo e contra todos, a cellula Portugal rompeu-se e o Brasil surgiu, de chofre, como cellula distinta, prompta para a vida em condições normaes... E' obvio. Essa marcha multisecular e uniforme, hoje, apresenta-se com meridiana clareza até o intimo de cada refolho e de cada detalhe. Exposta assim, mostra visivelmente, na sua Constancia intrinseca, a constancia de uma força causal immanente. Eil-a em acção, na desordem apparente dos factos e na ordem profunda dos effeitos, a lei de scicciparidade. A tal altura, quiçá se pergunte: parará ella aqui, aquella caminhada? Não, sem duvida; não parará aqui, nem em parte alguma. Nisso está o cyclo vital das nações, que é o mesmo cyclo vital das cellulas, semelhante ao de todos os sêres vivos. Por que haveriam de estacar em nós, os chamados abusivamente brasileiros, a natureza e a historia? Que teríamos nós de especial para que derogassemos as leis que regulam, através dos millenios e dos continentes, o movimento dos povos? Seria absurdo imaginal-o; esperal-o, seria idiotice. Por isso mesmo é que, obedientes a esse determinismo biosociologico, já agora avançamos de olhos abertos pela mesma estrada que palmilhou Roma, que palmilhou Hespanha, que palmilhou Portugal: assim como de Roma sahiu Hespanha, de Hespanha sahiu Portugal, de Portugal sahiu o Brasil, assim tambem , em breve, do Brasil - cellula que se multiplica por acissiparidade - sahirão novas cellulas, que serão nações novas a scintillar nos mappas. Não esplende ahi, por ventura, um feixe de translucidas evidencias? De certo. A unidade eterna das nações seria uma aberração, como a eternidade individual de um homem ou de uma arvore. Não se aponta, hoje, nenhuma que viesse, intacta, do erguer do panno da historia; todas passaram, cada uma de per si, para sobreviver apenas, como as cellulas, na voluvel dispersão das descendencias. Pela mesma razão, repugna á logica se aponte alguma que se destine, dyscola e soberba, em taes condições, á consummação dos seculos: não seria um organismo: seria um prodigio. E, na terra, não ha mais lugar para o milagre... Aqui, por acaso, alguém se lembrará de indagar: não se póde impedir indefinidamente a scissiparidade nacional por meios artificiaes? Sim, em theoria; como se póde, em biologia, protelar indefinidamentea scissiparidade cellular, mantendo-se o individuo sempre em ambiente favorável e amputando-se-lhe o protoplasma á medida do seu desenvolvimento. E' a conhecida experiencia de Hartmann com amebas. Por meio de communicações múltiplas, intensas e adequadas, pelo estabelecimento de uma rede continua e progressiva de interesses reciprocos, pela adopção de formas de governo uteis e e beneficas a toda e a cada uma das partes integrantes, é possivel , em theoria, dilatar a unidade de uma nação até o infinito. A longevidade da immensa Roma talvez se deva, em mais da metade, ao cuidado que tinha ella pelas suas estradas, com funcções ao mesmo tempo economicas, politicas e estrategicas. Em theoria, a cellula é immortal, mesmo sem divisões: por que não o seria egualmente a nação? Trata-se, no entanto, de um artifício experimental, inexequivel sem duvida, e inteiramente fora dos quadros reaes da historia e da natureza. Ninguem pensaria em ter uma patria no laboratorio! Em semelhante caso, quiçá se afigurasse a alguem possivel tal remedio para o Brasil. Mas, não; nem por sombras. Desde que a cellula inicia o seu processo de acisão, é inútil tentar detel-a: irá ao fim. O mesmo acontece aqui. O processo de scisão nacional avançou demasiado: a differenciação é irreparavel, irreparavel é o esphacelamento. Sabe-se de quatrocentos annos de actividade nesse sentido; há outros, comtudo, que se não logra contar nem medir, e são aquelles que levou o propria terra em se modelar a si mesma, tal qual a encontrou aqui o homem. E' a geologia que escava o alveo por onde, seculos adeante, rolarão as aguas da historia... Reprodução autêntica do Capitulo III, páginas 17 a 22, do livro AS BASES DO SEPARATISMO, exemplar nº 1483, de autoria do ilustre paraibano ALYRIO WANDERLEY. Editado no ano de 1935, por A. MEIRA EDITOR, São Paulo. ![]() PUBLICADO NO FACEBOOK NA PÁGINA TRADIÇÃO PAULISTA, A QUAL FICAM TODOS OS MÈRITOS PELO EXCELSO TRABALHO DE DIVULGAÇÃO DA HISTÓRIA PAULISTA. Suas obras em prol de S. Paulo conferem a Amador Bueno o título de herói dos paulistas, entretanto o episódio ocorrido em 1641 é um dos que mais suscitam sua memória: a aclamação do rei dos paulistas. A princípio um olhar insipiente nos leva a inferir uma conclusão errônea: ele não recusou, na verdade, a autonomia que sempre clamaram os paulistas? O que de fato se passou foi que se Amador Bueno consentisse com sua aclamação não estaria desvencilhando-se de uma coroa, mas sim submetendo-se à outra numa trama conduzida pelos espanhóis. Abaixo, um importante relato de Frei Gaspar sobre o ocorrido publicado em suas "Memórias para a História da Capitania de S. Vicente Hoje Chamada de S. Paulo". ~~~~~~ 176. Chegando a S. Paulo a notícia de que Luís Dias Leme havia aclamado Rei na Vila Capital de S. Vicente ao Sereníssimo Senhor Duque de Bragança com o nome de D. João IV, por ordem e recomendação que para isso lhe dirigira em carta particular D. Jorge Mascarenhas, Marquês de Montalvão e Vice-Rei do Brasil foi esta inesperada novidade um golpe sensibilíssimo aos espanhóis que se achavam estabelecidos e casados na dita Vila de S. Paulo, para onde tinham concorrido não só da Europa, mas também das Índias Ocidentais. Eles desejavam conservar as Povoações de Serra acima na obediência de Castela e não se atrevendo a manifestar seu intento, por conhecerem que seriam vítimas sacrificadas à cólera dos paulistas, se lhes aconselhassem que permanecessem debaixo do aborrecido julgo espanhol, resolveram entre si usar de artifício, esperando conseguir, por meio da indústria, o que não haviam de alcançar, se fossem penetrados os seus desígnios. 177. Tinham por certo que a Capitania de S. Vicente e quase todo o sertão brasílico antes de muitos anos tornariam a unir-se às Índias de Espanha, ou pela força das armas ou pela indústria, se os paulistas caíssem no desacordo de se desmembrarem de Portugal, erigindo um Governo separado, qualquer que ele fosse, suposta a comunicação que havia por diversos rios entre as Vilas de Serra acima e as Províncias da Prata e Paraguai. Com estas vistas, fingindo-se penetrados do amor ao país onde estavam naturalizados e do zelo do bem comum, propuseram aos seus amigos, parentes, aliados e a outros, um meio que lhes pareceu o mais seguro, para conseguirem os seus intentos: tal era o de elegerem um rei paulista; e ao mesmo tempo apontaram como o mais digno da Coroa Amador Bueno de Ribeira, em cuja pessoa, para não ser rejeitado pelos seus patrícios, concorriam as circunstâncias de ser de qualificada nobreza e de muito respeito e autoridade pelos empregos públicos que havia ocupado e ainda exercia, pela sua grande opulência, pela roda de parentes, e amigos, e pelas alianças de seus nove filhos e filhas, duas das quais estavam casadas com dois irmãos, fidalgos espanhóis, D. João Mateus Rendon e D. Francisco Rendon de Quevedo, que tinham passado ao Brasil, em 1625, militando na Armada Espanhola, destinada para a restauração da Bahía. Mas os espanhóis, em designarem Amador Bueno de Ribeira, se lisonjeavam que por ser filho de Bartolomeu Bueno de Ribeira, natural de Sevilha, produziria nele maior efeito o sangue de seus avós paternos, para vir a declarar-se maior efeito o sangue de seus avós paternos, para vir a declarar-se vassalo de Espanha, do que o herdado dos seus ascendentes maternos, da nobre Família dos Pires, e o ter nascido em uma província portuguesa para haver de seguir o legítimo partido das outras do Brasil, Reino e Conquistas. 178. Valeram-se os espanhóis de todos os argumentos possíveis para persuadirem aos paulistas e europeus pouco instruídos, que, sem encargo de suas consciências, nem faltarem à obrigação de honrados e fiéis vassalos, podiam não reconhecer por Soberano a um príncipe a quem ainda não haviam jurado obediência. Fomentavam ao mesmo tempo a vaidade dos ouvintes, exagerando o merecimento dos paulistas e europeus principais, e dizendo que as suas qualidades pessoais e nobreza hereditária os habilitavam para outros maiores impérios. Para os livrarem de temores, lembraram os milhares de índios seus administrados e escravos com que podiam levantar Exércitos formidáveis de muitos mil combatentes e a situação de S. Paulo, sumamente defensável e tão vantajosa nesse tempo, que por haver para os portos de mar tão somente a estrada de Paranapiacaba, de qualidade muito má, bastaria lançarem-se pedras pela serra abaixo, para se retirarem derrotados os expugnadores. 179. Eram sinceros os moradores de S. Paulo, e, ainda fiéis, bem poucos entre eles teriam a instrução necessária para conhecerem o Direito incontestável da Sereníssima Casa de Bragança ao centro, e para perceberem os laços e as funestas desgraças em que aquelas maquinações os iam precipitar. Além disso, a plebe em toda a parte é fácil de mover-se e de arrojar-se a excessos. Os espanhóis conseguiram seduzí-la e ajuntar um grande número de pessoas de todas as classes que, aclamando unanimemente por seu Rei a Amador Bueno de Ribeira, concorreram cheios de alvoroço e entusiasmo, à sua casa a congratular-se com ele. 180. Pasmou Amador Bueno de Ribeira quando ouviu semelhante proposição: ele detestou o insulto dos que a proferiram e com razões procurou dar-lhes a conhecer sua culpa e cega indiscrição. Lembrou-lhes a obrigação que tinham de se conformarem com os votos de todo o Reino e a ignomínia de sua Pátria, se não reparasse a tempo com voluntária e pronta obediência o desacerto de tão criminoso atentado. Mas a repugnância do eleito aumenta a obstinação do povo ignorante: chegam a ameaça-lo com a morte se não quiser empunhar o cetro. Vendo-se nesta consternação o fiel vassalo, saiu de sua casa furtivamente e, com a espada nua na mão para se defender, se necessário fosse, caminhou apressado para o Mosteiro de S. Bento, onde intentava refugiar-se. Advertem os do concurso, que havia saído pela porta do quintal, e todos correm após ele, gritando: viva Amador Bueno, nosso Rei: ao que ele respondeu muitas vezes, em voz alta: viva o Senhor D. João IV, nosso Rei e senhor, pelo qual darei a vida. 181. Chegando Amador Bueno de Ribeira ao Mosteiro, entrou e fechou rapidamente as portas. Como os paulistas antigos veneravam sumamente aos sacerdotes, principalmente aos Regulares, nenhum insultou ao Convento e todos pararam da parte de fora, insistindo porém na sua indiscreta pretensão. Desce à portaria o D. Abade, acompanhado da sua Comunidade, e, com atenções entreteve a multidão, enquanto Amador Bueno de Ribeira mandou chamar à pressa os eclesiásticos mais respeitáveis, alguns sujeitos dos principais que se não achavam no concurso. Vieram logo uns e outros, e todos unidos ao dito Bueno fizeram compreender aos circunstantes que o Reino pertencia à Sereníssima Casa de Bragança e que dele se acharia esta em posse pacífica desde o dia da morte do Cardeal Rei D. Henrique, se na violência dos monarcas espanhóis não houvera sufocado o seu Direito. 182. Nada mais foi necessário para se conduzirem aqueles fiéis portugueses como deviam: todos arrependidos do seu desacordo, foram cheios de gosto aclamar solenemente o Senhor D. João IV, com mágoa dos espanhóis, os quais, para não perderem as comodidades que tinham vindo procurar em S. Paulo, prestaram também o juramento de fidelidade ao mesmo Soberano. Para beijarem a Real Mão de S. Majestade Fidelíssima, em nome do Senado e moradores de S. Paulo, foram mandados à Corte os dois paulistas: Luís da Costa Cabral e Baltasar de Borga Gato; e o mesmo Senhor se dignou agradecer esta obediência, por Carta firmada do seu Real Punho, datada em Lisboa a 24 de setembro de 1643 (170). 183. A substância do referido caso se confirma com as palavras de Artur de Sá e Menezes, Capitão General da Repartição do Sul e Governador da Companhia dos Oficiais de guerra reformados, Juízes e Vereadores que tivessem servido na Câmara de S. Paulo, por ele passada a Manuel Bueno da Fonseca, e datada aos 3 de março de 1700, na qual depois de relatar alguns serviços do mesmo, diz o General (171): “E quando não bastárão estes serviços, era merecedor de grandes cargos, por ser neto de Amador Bueno, que sendo chamado pelo Povo para acclamarem Rei, obrando como leal, e verdadeiro Vassallo, com evidente perigo de sua vida clamou, dizendo que vivesse ElRey D. João IV seu Rey, e Senhor, e que pela fidelidade, que devia de Vassallo, digno de grande renumeração, hei por bem nomear...” 184. Esta patente foi confirmada pelo Senhor Rei D. Pedro II, a 25 de novembro de 1701, e nela, depois de se relatarem os serviços e merecimentos do mesmo Manuel Bueno da Fonseca, se dignou S. Majestade honrar a memória daquele grande homem, com as seguintes expressões: E ultimamente por ser neto de Amador Bueno, leal e verdadeiro Vassalo de minha coroa (174). Também o Senhor Rei D. João V no alvará que se passou a 20 de novembro de 1704, para efeito de ser armado Cavaleiro da Ordem de Cristo o referido Manuel Bueno, faz uma igualmente honrosa comemoração do mesmo respeitável paulista: Por ser neto do meu muito honrado, e leal Vassalo Amador Bueno (173). Pela tradição constante entre todos os antigos e alguns modernos desta Capitania, sabem-se as mais circunstâncias principais do mencionado sucesso o qual eu refiro com gosto, não pela honra de contar entre os meus terceiros avós ao dito Amador Bueno, mas sim para propor ao mundo um exemplo da mais heroica fidelidade; e porque os paulistas, conservando na memória estas e outras gloriosas ações dos seus Maiores, continuem a mostrar em todo o tempo aquele mesmo amor e inalterável fidelidade que sempre os caracterizaram para com os seus Augustos Soberanos. A glória de ter por progenitor Amador Bueno de Ribeira pertence a muitas nobres famílias existentes nas Capitanias de S. Paulo, Goiás, Gerais, Cuiabá e Rio de Janeiro, onde são seus ilustres descendentes os da casa de Marapicu, cujo Senhor, o Desembargador do Paço, João Pereira Ramos de Azevedo Coutinho, respeitável por tantos títulos, é 4.º neto do mesmo Amador Bueno de Ribeira, por sua filha D. Maria Bueno de Ribeira, casado com o sobredito D. João Mateus Rendon, seu 3.º avô. Frei Gaspar. Memórias para a História da Capitania de S. Vicente Hoje Chamada de S. Paulo. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1976. P. 138-142. (Escrito originalmente em 1797). ![]() "As companhias deviam socorrer o 'continente do Viamão', pois, diz o Vice-Rei em sua carta, 'estou persuadido que os Paulistas são os mais próprios homens que o Brasil tem para a vida militar'. " Por J. Wasth Rodrigues Deu-se, na Idade-Média, o nome de aventureiros a soldados voluntários, pagos ou não, que se agregavam às hostes, combatendo irregularmente e vivendo do saque. No século XIV, tornaram-se mercenários integrados às bandes, tropas compostas de vagabundos, salteadores e criminosos. Sua história é dramática pois esta gente indisciplinada e rixenta, que servia a quem melhor pegasse, foi uma das grandes preocupações dos chefes militares e dos monarcas, só melhorando no século XV, quando vieram a formar as Grandes Compagnies. O nome “Aventureiros” aparece em Portugal, já com sentido inteiramente diferente, com D. Sebastião, em 1578, na batalha de Alcacer — Quir. É, então, assim chamado um esquadrão formado de 1400 voluntários fidalgos. No Brasil, em tempos coloniais, a presença de “Aventureiros” é constatada várias vezes. Na expedição que partiu de Pernambuco em 1614 para a conquista do Maranhão, marcharam, além do corpo de infantaria, conforme relata Pereira da Costa, voluntários chamados Aventureiros “que, separadamente do mesmo corpo, teriam para comandá-los, quando fosse necessário, o cabo que se lhe nomeasse”. Os chamados Aventureiros da conquista eram companhias irregulares de índios e mestiços, criados para preceder na penetração do sertão às forças regulares, sendo geralmente destinadas a combater as investidas do silvícola. Foram extintas pela Provisão de 19 de dezembro de 1819. Companhias de Aventureiros Paulistas. A 1 de agosto de 1739, o governador D. Luís de Mascarenhas criou no território de Goiás — então pertencente a São Paulo — duas companhias de pedestres com designação de aventureiros que, pouco depois, foram reduzidas a uma. A partir da segunda metade do século XVIII, muitas companhias foram levantadas em São Paulo, como veremos, para acorrer às lutas no Sul ou guarnecer fronteiras. Uma companhia de “Aventureiros” foi organizada por Cristóvão Pereira de Abreu, criada por ordem de Gomes Freire de Andrade a 16 de janeiro de 1752, para integrar a expedição ao Rio Grande de São Pedro, por motivo da execução do tratado de Madrid. Gomes Freire partiu de São Paulo com duas companhias de Santos, ao todo 104 homens, e a Companhia de Aventureiros Paulistas que, com os Lagunenses, somaram 162 homens, sob o comando do capitão Mateus Camargo. Sob os feitos desta expedição, diz Rio Branco que os Aventureiros de São Paulo e Santa Catarina ajudaram a repelir o ataque dos guaranis, comandados por Sapé, ao forte do Rio Pardo, a 29 de abril de 1754. O forte, que estava sob o comando do coronel Tomás Luís Osório, tinha por guarnição, além dos Aventureiros, infantaria do Rio de Janeiro e Dragões do Rio Grande(2). Iniciada a luta no Sul contra os Castelhanos, motivada pelas hostilidades destes, chefiados por Vertiz y Salcedo, coordenou o Conde de Bobadela a 28 de março de 1762 ao Governador de Santos, Alexandre Luís de Souza Menezes, que subisse a S. Paulo e formasse um corpo de 200 homens. Informa Rio Branco que a 1 de janeiro de 1763, foi tomada a “trincheira espanhola do arrio de Santa Bárbara (Rio Grande do Sul) pelo Capitão Francisco Pinto Bandeira, à frente de 230 Dragões do Rio Grande e Aventureiros Paulistas. O principal herói do dia foi o Capitão Miguel Pedroso Leite, Comandante da infantaria de S. Paulo. A trincheira tinha 7 peças que foram transportadas para o forte do Rio Pardo e era defendida por 500 milicianos corrientinos e muitos índios, sob o comando do Tenente-Coronel Antonio Catanix”. Trata-se, provavelmente, de Aventureiros que ficaram no Sul, remanescentes da expedição de Gomes Freire, ou das companhias de infantaria de Santos, que marcharam para o Rio Grande em 1762. O Conde da Cunha, que substituiu Gomes Freire (conde de Bobadela) no governo do Brasil e no da capitania de S. Paulo em outubro de 1763, determinou ao governador de Santos, que fossem levantadas 4 companhias de Aventureiros, em todo o território paulista, com 60 homens cada uma, formando-se em Santos um núcleo de exército sob o comando do cel. Mexia Leite. As companhias deviam socorrer o “continente do Viamão”, pois, diz o Vice-Rei em sua carta, “estou persuadido que os Paulistas são os mais próprios homens que o Brasil tem para a vida militar”. E promete o pagamento do soldo “sem demora de dois meses pontualissimamente e ajuda de custas antes de saírem de suas casas”. O soldo oferecido foi de 4$800 por mês. Traiçoeiramente, D. Luís Antonio atraiu a tropa para São Bernardo e lá, compulsoriamente, escolheu os melhores homens, formando as 4 companhias que, sob o comando do Sargento-mor Teotônio José Juzarte, seguiram para Santos a 11 de Setembro de 1765 e lá ficaram de prontidão(3). Como sempre, o magnífico soldo e as vantagens prometidas aos aventureiros com tanto açodamento pelo Conde da Cunha foram esquecidos. Surge, neste momento a grave questão da situação destas companhias em face da organização do exército pois, criadas em emergências, não se enquadravam em nenhuma das três linhas existentes: tropa paga, auxiliares, ou ordenanças; daí a dificuldade para a legalização do soldo prometido, mandando embarcar as companhias para o Rio Grande, e aqueles que não o aceitassem ou não quisessem embarcar, que fossem castigados. De fato, embarcaram a 3 de janeiro de 1766 e chegaram à fronteira do Viamão a 14 de fevereiro do mesmo ano. A 21 de maio de 1767 foi feito um novo pedido, o de mais 90 aventureiros. Em carta de 14 de setembro do mesmo ano a D. Luís Antônio, pediu o Conde da Cunha que as 4 companhias se recolhessem aos seus quartéis pois chegara tropa de Lisboa com o general Bohm e o Engenheiro Brigadeiro Funck. Efetivamente, os Aventureiros voltaram do Sul em janeiro de 1768. Bohm era alemão e estivera em Portugal na comitiva do Conde de Lippe, em 1762, sendo um dos seus mais distintos oficiais. Em 1765, voltou a Portugal a pedido de Lippe, e, em 1767, veio para o Brasil, enviado pelo Marquês de Pombal, como tenente-general comandante em chefe de todas as tropas na campanha do Sul. Terminada esta com a vitória, voltou para o Rio em janeiro de 1779, sendo festivamente recebido. Devido a uma queda de cavalo, veio a falecer em junho do mesmo ano (Rio Branco diz a 22 de dezembro de 1783) sendo sepultado no Convento de Santo Antônio, pois se havia convertido ao catolicismo. Em 1772, três companhias de Aventureiros figuram na guarnição do forte ou presídio do Iguatemi. Este forte, situado à margem do rio Iguatemi, perto da foz do rio das Bogas, no Sul do Mato Grosso, foi fundado em 1765 pelo capitão João Martins de Barros, por ordem de D. Luís Antônio, para conter as incursões espanholas. Suas defesas, formadas de cinco baluartes e dois meios baluartes em terra batida e faxina, só terminaram em 1770, sendo armadas com 14 canhões. A guarnição foi composta de cinco companhias de Aventureiros Paulistas e uma de artilharia do Rio de Janeiro, num total de 300 homens. Sofreram estes soldados e a população civil, durante anos, toda a sorte de provações, misérias e doenças, com enorme perda de vidas. Em 1774, o forte foi atacado pelos Gauicurus. Em 1776, recebeu um reforço de 78 soldados do Regimento de Infantaria de S. Paulo, de Mexia Leite. Rendeu-se aos castelhanos comandados por D. Agostinho Penedo, em 27 de outubro de 1777, sendo arrasado. Destacam-se, na triste história deste forte, o sertanista Teotônio José Juzarte que comandou por algum tempo sua guarnição e deixou um Diário onde narra o que foi a vida na praça; o capitão João Martins de Barros e o vigário Antônio Ramos Louzada, que teve a desdita de assinar a capitulação — pois estava a praça sem comando — e por tal crime passou 19 anos encarcerado no Forte da Barra, em Santos. A 10 de agosto de 1774, promete D. Luís Antônio ao vice-rei a formação de mais uma companhia de aventureiros ou caçadores, precisando para isso de um oficial. Em 1775, são reorganizadas as tropas de S. Paulo a fim de seguirem para o Sul em vista de novas lutas, criando-se então a Legião de Voluntários Reais. Com isso, tendem a desaparecer os aventureiros; no entanto, em carta de 1777 promete Martim Lopes Lobo ao general Bohm a formação de uma companhia de aventureiros (de caçadores como então eram chamados) “de 100 homens fortes e resolutos que chamam caneludos”, projetando criar em seguida outra. Essa notícia enche de júbilo o general em chefe, que a 2 de junho do mesmo ano, não escondendo sua alegria ao governador, escreve sobre a notícia: “é a mais agradável que v. excia. me dá da formatura de uma companhia de aventureiros de cem homens, que eu receberei de braços abertos, e beijos às mãos de v. excia. pela mercê que nisto me faz particularmente”. Tal promessa não teve efeito em vista do armistício assinado. ~~~~ Excerto do livro "Tropas Paulistas de Outrora". São Paulo: Governo do Estado, 1978. Publicado no Facebook pela ótima página TRADIÇÃO PAULISTA ![]() TEXTO DE MONTEIRO LOBATO (famoso escritor, editor e separatista Paulista) “Após a vitória de São Paulo, na campanha ora empenhada, se faz mister que seus dirigentes não se deixem embalar pelas idéias sentimentais de brasilidade, irmandade e outras sonoridades. O Norte inteiro é nosso inimigo instintivo. O Rio Grande não é amigo. Minas cuida de si. O fato de sermos irmãos não implica amizade e apoio. Temos de nos guardar de todos esses irmãos. Se Abel houvesse pensado assim não teria caído vítima da queixada de burro com que o matou Caim. Consideremo-los como inimigos: se não o forem melhor; se inimigos se revelarem, estaremos preparados para a hipótese. A atitude única que o instinto de conservação impõe a São Paulo, depois da vitória, deverá expressar-se nesta fórmula: Hegemonia ou Separação. Ou São Paulo assume a hegemonia política, que lhe dá a hegemonia de fato que já conquistou pelo seu trabalho no campo econômico e cultural, ou separa-se. De modo nenhum poderá ficar na posição em que se achava em virtude da Constituição de 24 de fevereiro. Seria um suicídio. Para efetivar essa conquista não há negociar. Há impor com armas na mão. Medida de elementar evidência depois da vitória será, com absoluto desprezo de todas as leis federais relativas (leis feitas contra nós, na maioria) a transferência para São Paulo do melhor material bélico que esteja em depósito nos arsenais do Rio – aviões, artilharia, munição, etc. Em vez de nos armarmos para uma equiparação bélica com o inimigo é mais barato desarmarmos o inimigo e ficarmos com as suas armas. Desarmando-o desse modo, daremos, ao militarismo federal o primeiro golpe seguro. Ficará ele com os bufos, com a arrogância – e nós com a pólvora e a granada. O dilema é sério. Ou São Paulo desarma a União e arma-se a si próprio, de modo a dirigir doravante a política nacional a seu talento e em seu proveito, ou separa-se. Continuar como até aqui, a contribuir com setecentos mil contos por um ano para a manutenção do monstruoso parasitismo burocrático e militarístico do Rio de Janeiro – cuja função primordial é agredir e sabotar São Paulo – corresponde a suicídio por imbecilidade. Temos que pensar nisto muito a sério. A vitória paulista vai nos custar um sacrifício imenso. Guerra significa destruição intensa de riquezas. Nada mais caro que a guerra – e temo-la em casa. Essa vitória caríssima, porém, será miseravelmente sabotada e surrupiada pelos nossos amados irmãos em brasilidade, se no momento oportuno não soubermos agir com a mesma decisão com que estamos agindo agora. Temos que arrancar as armas federais (que o dinheiro paulista pagou) das munhecas dos nossos queridíssimos irmãos antes que eles as voltem contra nós ainda uma vez. Já três em sete anos – 1924, 1930, 1932. Positivamente é demais… O nosso sentimentalismo é uma forma de romantismo. Romantismo quer dizer criação dum mundo falso, fora de todas as realidades. De todo romantismo o homem acorda, um dia, ferido pelo pontapé da realidade. Ponhamos de lado o romantismo grotesco com que nos procuramos iludir, encaremos de frente a realidade real – como fazem os fortes. Saibamos, convençamo-nos de que Hobbes terá eternamente razão: o homem é o lobo do homem. Saibamos ainda que nunca, jamais, em tempo algum, o fato de ser irmão tirou ao lobo a sua ferocidade de lobo. Aceitemos Hobbes. Sejamos lobos contra lobos. Lobos gordos contra lobos famintos. Organizemos a nossa defesa. Tenhamos até a nossa futura Tcheca interna, nos moldes russos, se for preciso, para a destruição sistemática dos inimigos internos. Itararé está mostrando que quem o inimigo poupa nas mãos lhe morre. Convençamo-nos de que só há dois caminhos na vida: ser martelo ou bigorna, boi de corte ou tigre. Velha bigorna, velho boi de corte, velha vaca de leite que tem sido, transforme-se São Paulo em tigre. Faça-se todos dentes e garras afiadíssimas, antes que a linda idéia romântica da brasilidade o reduza a churrasco. E oponhamos aviação eficientíssima e metralhadoras das mais modernas às queixadas de burro com que Caim nos pode atacar.” *A íntegra da carta se encontra no livro “1932 – A guerra paulista”, de Hélio Silva, nas páginas 279 a 283.” ![]() “A Revolução figura não apenas como produto de interesses políticos das elites econômicas paulistas, mas também de um ideário identitário que encontrava importantes reflexos na intelectualidade e em suas corporações e instâncias de atuação” do livro 1932: Memória, Mito e Identidade. ———————————————– “Nesta guerra, entretanto, há uma página que é impossível se escrever. Nem o tempo, nem a inteligência humana, nem a história, com a pesquisa tantas vezes falha de seus autores, conseguirão interpretar a realidade da abnegação do povo paulista e o heroísmo de teus filhos” Manuel Osório, A Guerra de S. Paulo, 1933. ———————————————– “O Espetáculo de São Paulo em armas entusiasma mesmo os céticos. Há uma estranha beleza nesta metamorfose marcial. Um povo de trabalhadores despe a blusa e veste a farda. Tudo aqui deslumbra mesmo a agitação mais ardente”. João Neves da Fontoura – Rádio Record em 1932 ———————————————– “Contra a Constituição? Que vinham? Combater o comunismo ou o separatismo? Combater rebeldias ou estrangeiros? Não. Essa era verdadeira bacoria, errada, muito falsa. Vinham matar paulista, que era a frase muito comum dos prisioneiros gaúchos e de muitos pernambucanos, que ao menos tinham a verdade inaudita da sua vilania. E esses encarnavam o pensamento legítimo do Brasil que sabe ler”. Mário de Andrade ———————————————– “Incitei esta vibrante mocidade paulista a arriscar suas vidas, como eu poderia deixar de ir à frente? Eu não sou homem de retaguarda, que fica fazendo discursos nas arcadas da faculdade de direito e nas rádios, a proclamar-se ‘paulista de 400 anos’. O meu paulistanismo eu afirmo nas trincheiras de fuzil nas mãos”. Alfredo Ellis Jr ———————————————– “São Paulo, mesmo antes da descoberta do Brasil, já era uma nação amada e defendida por um povo bom, valente e generoso; já era uma nação definida geograficamente, não pelos tratados hipócritas das chancelarias, mas pelas flechas sibilantes dos arcos guaianás”. Plínio Ayrosa ———————————————– “Se um dia São Paulo se levantar em armas, contra o Brasil, não se veja nisso um ato de loucura. Uma falta de patriotismo!Não! Será porque o patriotismo paulista o exige! E o grito de POR SÃO PAULO LIVRE! arrancará uma nova nacionalidade aos braços da opressão”. José Fairbaks Belfort de Mattos, Fundamento Jurídico do Separatismo Paulista, 1933. ![]() Publicado no livro "Fundamentos do Separatismo", de João Nascimento Franco, Editora Pannartz. Quando a ideia separatista começou a ganhar impulso, algumas autoridades ensaiaram a repressão com base na Lei n° 7.170, de 1983, que tem por objetivo punir os crimes contra a segurança nacional, a unidade territorial e a ordem política e social. Durante o Estado Novo, foi editado o Decreto-lei n° 431, de 18.5.38, cujo art. 2°, item 3, cominava a pena de morte para quem tentasse "por meio de movimento armado o desmembramento do território nacional", desde que para reprimi-lo fosse necessário o uso de operações de guerra. Tratava-se, evidentemente, de texto "ad terrorem", porque nenhum movimento armado estava ameaçando a unidade territorial do Brasil. Leis dessa ordem são típicas dos regimes de força. Disfarçando seus verdadeiros objetivos, que é amordaçar a liberdade de opinião e de sua comunicação, o legislador editou a Lei n° 7.170, que, segundo prestigiosas opiniões, ficou revogada pelos incisos seguintes, do art. 5°, da Constituição de 1988: a) IV e IX, que asseguram a livre manifestação de pensamento; b) VIII, segundo o qual ninguém será privado de direitos por motivo de convicção política; c) XVI, XVII e XVIII, respectivamente destinados à tutela do direito de reunião e de associação para fins pacíficos. Referidos textos constitucionais são mandamentos que têm de ser respeitados e cumpridos. Contra eles é inoponível toda e qualquer disposição infra-constitucional, assim como atos em contrário de qualquer autoridade. Portanto, desde que se utilizem de meios pacíficos, todos os que vivem no território nacional têm direito de propagar suas idéias políticas, entre as quais a do separatismo, resultante da convicção política de que o país atingiu o ponto culminante do insucesso como unidade geográfica e administrativa. Mesmo entre os separatistas mais convictos esse desfecho histórico é constatado com pesar. Contudo, os povos têm direito de aspirar o melhor futuro e isso parece impossível através da unidade nacional de um país que tem, entre seus cento e quarenta milhões de habitantes, trinta e dois milhões de famintos; que apresenta analfabetismo ascendente, impressionante favelização urbana, confesso colapso da malha rodoviária, precaríssimo sistema ferroviário, elevado nível de insalubridade, de miséria, de criminalidade e, sobretudo, institucionalizada corrupção administrativa. E que nada faz com visão e objetividade para que esses fatos sejam superados. Diante desse quadro, irrompeu a proposta separatista pugnando pelo fracionamento do país em cinco ou seis blocos, a fim de que cada qual possa gerenciar o produto de seu trabalho e cuidar de seu próprio destino. Talvez, segundo alguns, por via de uma confederação real, descompromissada com o passado e com o tal "jeitinho" que costuma ser utilizado como habilidade, mas que não passa de maquinação através da qual "plus ça change plus ça c'est la même chose"... Pensar e agir pacificamente nesse sentido é direito inderrogável pela malsinada lei federal n° 7.170, de 1983, com a qual o autoritarismo militar pretendeu algemar idéias e nulificar a liberdade individual. Essa conclusão deflui de sentença proferida, em 31.8.93, pelo juiz José Almada de Souza, da 8ª Vara da Justiça Federal de Curitiba (inquérito foi mandado à Justiça Federal a pedido do procurador da Justiça Militar, por ele considerado incompetente, uma vez que cogitava de fato que, se criminoso, teria natureza política) na qual o ilustre magistrado determinou o arquivamento de inquérito instaurado pela Policia Federal do Paraná, mediante provocação do Ministério da Justiça. E é importante salientar que referida decisão atendeu a requerimento do próprio Ministério Público, representado pelo Procurador da Justiça, Dr. Jair Bolzani, que se tomou, pela sensatez e serenidade de sua manifestação, credor das homenagens dos homens livres. Em seu pronunciamento, o douto Procurador ponderou: "Primeiramente, há que se ter em conta que a configuração do crime previsto no artigo 11 da Lei n° 7.170/83 depende da ocorrência de um dano efetivo à integridade territorial nacional ou de um dano potencial, isto é, aquele que pode resultar do comportamento do sujeito, conforme prevê o artigo 1° da referida lei. Portanto, não se pode admitir, sob pena de má aplicação de tal lei, que a apreensão de bonés, chaveiros, camisetas, cartazes, adesivos e panfletos com os dizeres 'O Sul é o meu País' e 'Sociedade amigos do Paraná' seja suficiente para perfazer o tipo penal em exame". Em suma, segundo o ilustre membro do Ministério Público, a utilização de meios pacíficos de difusão do tema separatista não compromete a ordem pública, porque se insere na liberdade de opinião e de sua manifestação, assegurada pela Lei Maior. Igual entendimento já havia sido sustentado pelo ilustre criminalista Damásio E. de Jesus, ao escrever que os delitos capitulados na Lei n° 7.170 só se tipificam com um concreto "ato executório de tentativa de divisão do país, mediante violência física, grave ameaça, atos de terrorismo, estrutura paramilitar, etc.". Numa síntese, o consagrado criminalista preleciona que "o crime consiste em tentar dividir o país à força" (O Estado de S. Paulo, 18/5/1993, pág. 3). Também o ilustre advogado e jornalista Luiz Francisco Carvalho Filho lamentou que o Presidente da República e seu Ministro da Justiça partissem para a intimidação brandindo a famigerada Lei de Segurança Nacional que, sobre ter sido revogada pela Constituição Federal, evoca a fase mais toma da ditadura militar: "Ao reprimir os separatistas do Sul do país, tentando enquadrá-los na Lei de Segurança Nacional", disse o ilustre advogado, o governo "revela desvio autoritário, desconhecimento da lei e falta de inteligência política". E prossegue, depois de afirmar que se os separatistas haviam ofendido a Constituição, o governo também a tinha violado: "Em primeiro lugar, porque o dispositivo que pune a tentativa de desmembramento do território não é para quem manifesta a idéia, mas para quem tenta dividir o país à força. Os separatistas têm direito de se associar, de defender a convocação de um plebiscito para decidir o desmembramento e difundir o projeto". Antecipando-se às decisões judiciais que viriam trancar os inquéritos contra os separatistas, conclui o jurista: "O que se deve proibir é o ato de violência, é a organização paramilitar. Ao contrário do que pensa o ministro da Justiça, a Constituição assegura a plenitude da liberdade de manifestação do pensamento. E, com efeito, o país tem muitos problemas reais" (Folha de São Paulo, 9/5/1993, págs. 1-12). No mesmo sentido disserta Sérgio Alves de Oliveira, em obra sobre o propósito separatista sulino, depois de ponderar que o Estado é um meio e não um fim: "Se o Estado não consegue atender a contento as necessidades e desejos humanos, nos parece que o próprio direito natural coloca nas mãos do homem a faculdade de refazer o Estado dentro desse objetivo". E continua: "Portanto, nenhum crime existe em buscar o bem-estar do povo de uma determinada região mediante o processo separatista, o que é uma das formas admitidas em doutrina para refazer o Estado. E tanto isso é um direito que a própria história registra inúmeras mutações havidas ao longo do tempo em outras nações. Se é tida como válida a emancipação de municípios e de Estados-membros, qual o motivo de não se entender esse mesmo direito a regiões que desejam formar um novo Estado soberano? Se é possível ao indivíduo, a qualquer momento, desligar-se das sociedades humanas, o que é consagrado inclusive na constituição, como deixar de reconhecer o direito de secessão?" (Independência do Sul, pág. 61). Nos comentários às constituições e cartas constitucionais brasileiras, desde a de 1891 até a outorgada pela ditadura militar em 1964, Pontes de Miranda reprisou sempre que se integram, uma como conseqüência da outra, a liberdade de pensamento e a liberdade de expressá-lo. Segundo o constitucionalista, o aniquilamento de uma importa na inutilidade da outra: "Se o poder público se esforça, se afana, por saber o que no íntimo se pensa, o que se diz, não há liberdade de pensar. Tal esmiuçar de palavras, de gestos, para se descobrir o que o indivíduo pensa, marca um período de estagnação ou de decadência dos povos. A diferença entre liberdade de pensamento e liberdade de emissão do pensamento está como se quer. Nessa, além de tal direito, o de se emitir de público o pensamento. Mas que vale aquela sem essa? Vale o sofrimento de Copérnico esperando a morte, ou o acaso, para publicar a sua descoberta. Vale o sofrimento de todos os perseguidos, em todos os tempos, por trazerem verdades que não servem às minorias dominantes, essas minorias que precisam considerar coisa, 'ontos', as abstrações, para que a maioria não lhes veja falsidade" (Comentários à Constituição de 1967, tomo V, págs. 149 in fine e 150). Fiéis a esses princípios, os juristas se manifestaram contra a repressão aos separatistas e esclareceram que a sustentação da idéia secessionista respalda-se no princípio constitucional da liberdade de opinião, donde resulta que nenhum crime eles praticam quando as divulgam. Crime é, como se verificou, a utilização de meios violentos e de organização paramilitar. Nenhum ato desse tipo foi até hoje praticado, nem está na intenção dos que, convencidos da inoperância da união política e territorial brasileira, pregam por meios pacíficos a separação, que pode ser alcançada sem recurso à violência, pelo simples debate das idéias. Porque, já dizia Voltaire, quando um povo começa a pensar ninguém consegue detê-lo. O direito de secessão se concretizará se e quando o momento histórico chegar, tal como aconteceu com o Brasil em relação a Portugal, ou com os Estados Unidos em relação à Inglaterra. Tudo permite admitir que o desate poderá ser feito através de simples reforma constitucional que dará espaço a um plebiscito arejado, amplo e livre. Até lá os separatistas suportarão a pecha de impatriotas. Mas resistirão, lembrando-se de que também De Gaulle e Jean Moulin foram tachados de inimigos da pátria e de subversivos pelo regime de Vichy, quando sozinhos começaram a lutar pela libertação da França; de que Tiradentes foi igualmente apodado de louco e de lesa-pátria pelas autoridades fiéis à Coroa portuguesa, de que os revolucionários de 1932, que o governo federal de então denunciou ao país como inimigos, hoje são reverenciados até pelo Exército, nas comemorações realizadas em cada 9 de Julho... Compreende-se, portanto, a serenidade e o senso de justiça com que agiram o Ministério Público e o referido Juiz Federal do Paraná, não vislumbrando nenhum matiz delituoso nos atos meramente políticos praticados pelos líderes paranaenses do Movimento "O Sul é o meu País". E note-se que ao parecer acolhido pela mencionada sentença, soma-se outra manifestação do Ministério Público Federal reconhecendo o direito à divulgação do ideal separatista e tutelando-o contra ato do chefe da agência da Empresa Brasileira de Correios, na cidade de Laguna, que resolveu interditar a expedição e o recebimento de correspondência pelo Movimento "O Sul é o meu País" (O Estatuto do Movimento O Sul é o meu País tem existência legal, pois foi registrado sob n° 363, fls. nº 86, livro A.3, do Registro Especial de Laguna, e está inscrito no CGC-MF nº 80.961 337/0001-02). Em face desse ato, o presidente do Movimento, Dr. Adílcio Cadorin, reclamou perante o Ministério da Justiça, que encaminhou o caso ao Ministério Público Federal, em Florianópolis. Tão logo recebeu o expediente ministerial, o Ministério Público Federal, por seu agente de Florianópolis, impetrou mandado de segurança contra o ato da autoridade coatora. Na sustentação do "writ" impetrado, o Procurador da República, Dr. Marco Aurélio Dutra Aydos, escreveu: "Tratando-se de direito concernente a liberdades públicas, desde logo que se estabeleça um princípio interpretativo: só pode ser ele limitado por lei que defina, precisamente e em toda a sua extensão, o objeto de restrição. A enumeração legal deve ser entendida como de numerus clausus, não podendo ser ampliada por analogia. É princípio de direito penal que a lei incriminadora tenha de ser certa, lex certa como ensina FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO: 'A exigência de lei certa diz com a clareza dos tipos, que não devem deixar margens a dúvidas nem abusar do emprego de normas muito gerais ou tipos incriminadores genéricos, vazios.' (Princípios Básicos de Direito Penal, SP, Saraiva, 1991, pág. 29)". O princípio da lex certa é de todo aplicável ao caso em exame, que trata de restrição legal a direito constitucionalmente assegurado. Se a lei restritiva é aberta, vazia, pode o administrador jogar com os seus conceitos para conceder ou negar o direito a seu falante. Expressões com "dizeres injuriosos, ameaçadores, ofensivos à moral, contrários à ordem pública ou aos interesse do país, não são aptas a conferir certeza à norma restritiva de direito. Ao fazer juízo de inconveniência aos interesses do país e à ordem pública, fundado no art. 13, IV da Lei 6.538/78, a autoridade impetrada não apenas restringiu o direito à correspondência em casos que ela mesma considera 'muito complexa', mas antecipou-se à investigação policial e à opinião delicti. O administrador foi polícia, acusador e juiz. No caso concreto, a investigação policial iniciou-se com pedido de busca e apreensão formulado perante o Juízo Federal da Segunda Vara (Processo n° 93.0003779-0). Pode se cogitar da hipótese de o Ministério Público e o Judiciário considerarem a conduta, do ponto de vista da Lei de Segurança Nacional em vigor, lícita. Não se pode admitir que a Administração emita tais juízos, restringindo direitos. Sendo penalmente lícita ou irrelevante a conduta, não pode o administrador fazer dela juízo de oportunidade e conveniência, a teor do art. 13, IV da Lei 6.538/78, a qual, nessa parte, por criar tipo um vago e incerto para restrição de direito constitucional, afronta a Lei Maior". Estas considerações e tão lúcidas manifestações do Ministério Público, do Poder Judiciário e dos juristas, deixam claro que qualquer pessoa pode aspirar e pregar a separação de seu Estado, quando convicta de que ele está suficientemente preparado para gerir seus próprios negócios, ou por entender que seus interesses atingiram um ponto de clivagem com os interesses de outras regiões. Conseqüentemente, nada justifica restrição ou punição dos que sustentam o ideal separatista pelos meios de comunicação, desde o rádio até o livro. É claro que, em respeito à Constituição, não deve ser adotado nem insinuado nenhum meio violento. Melhor dizendo, ou sendo mais claramente, ser separatista e debater o separatismo é direito que nenhuma norma legal pode impedir sem desrespeito à Constituição. Trata-se da liberdade de opinião, assegurada pela Declaração Universal dos Direitos do Homem. Em vez de coagir, cabe às autoridades, em respeito ao princípio de autodeterminação dos povos e à liberdade de opinião, testar a consistência ou a inconsistência da idéia através de um plebiscito cujo resultado deverá ser civilizadamente aceito tanto pelos separatistas quanto pelos adeptos da união. Dir-se-á que a Constituição considera a unidade nacional como "cláusula pétrea" e que, por isso, o plebiscito seja inconstitucional. Ocorre que as "cláusulas pétreas" constituem uma heresia sempre suplantada pela força incoercível da História. Quando o relógio da História bater a hora da separação nenhum dispositivo legal, pétreo ou não, poderá adiá-la. |